O último guarda de páte Korínthioi

Eu sou Aion guarda dos tesouros do navio páte Korínthioi.

O mar estava inquieto naquela noite. Eu sentia uma opressão densa sobre mim, sobre o Korínthioi, como se uma sombra invisível nos cercasse. O céu, de um negro sem luzes, refletia nas águas uma escuridão que parecia se estender até os confins do ser. Algo naquela travessia me causava repulsa, mas eu não ousava desviar os olhos dos baús de madeira, bronze e mármore, pois minha tarefa era proteger o que de mais valioso havia para a glória dos nossos.

Dentre os objetos que guardava, havia uma caixa que me despertava especial inquietude. Ela estava trancada com correntes de prata, e, segundo diziam, continha um artefato extraordinário: o “coração do céu”, ou assim chamavam. Uma engenhoca feita para medir o tempo e os ciclos dos astros, algo incompreensível para qualquer homem comum. Eu não acreditava nessas superstições, mas algo no olhar do capitão, ao ordenar que ninguém se aproximasse da caixa, era perturbador. Havia uma aura quase sobrenatural ao redor do objeto.

Enquanto velava e velejavamos, o mar ficou subitamente quieto. Um silêncio sufocante tomou o ar, e senti os pêlos da nuca se arrepiarem. Fui tomado por uma curiosidade macabra, e então fiz o que jamais deveria ter feito: me aproximei da caixa. Sem entender o motivo, levei minha mão à corrente e a toquei. O frio do metal queimou minha pele, mas não consegui recuar.

No exato instante em que meus dedos roçaram o bronze da caixa, ouvi um sussurro. Um sussurro que não vinha do convés, nem do mar. Era um murmúrio vindo de dentro de mim, uma voz que parecia escapar de um abismo profundo. Parei, com o coração disparado, tentando me convencer de que era apenas o vento. Mas, então, as engrenagens da caixa começaram a girar sozinhas, como se despertassem de um longo sono.

Aos poucos, comecei a ouvir vozes ao meu redor, e, ao olhar em volta, vi sombras movendo-se na escuridão. Eram figuras deformadas, quase humanas, mas com traços fantasmagóricos, como se fossem ecos de algo esquecido. Elas sussurravam em línguas estranhas, e o som parecia enroscar-se em minha mente, trazendo-me memórias de coisas que nunca vivi, de eras passadas, de guerras e rituais antigos.

Aturdido, recuei, mas percebi que o convés agora parecia uma extensão de um labirinto negro, vasto e sem fim. Tentei correr, mas meus pés pareciam presos a um chão inexistente. Olhei para cima e vi o céu, agora tomado por nuvens pesadas, desenhando figuras e rostos que riam de meu desespero. Cada um dos rostos trazia olhos vazios, e seus lábios sibilavam o meu nome.

Subitamente, a embarcação começou a ser sacudida violentamente. A sensação de movimento tornou-se brutal e frenética. As ondas batiam contra o casco com uma força que parecia inumana, e eu sabia que aquilo não era obra do vento ou da tempestade. O mar estava furioso. Olhei para a caixa mais uma vez, e, naquele instante, vi, refletida no metal corroído, a imagem de um ser colossal, um deus ou monstro marinho, cujas escamas refletiam o brilho das estrelas. Seus olhos — vazios e famintos — estavam fixos em mim.

A criatura então submergiu, e o navio balançou violentamente, lançando alguns de meus companheiros ao mar. Eles gritavam, mas seus gritos eram engolidos pelo silêncio profundo das águas, um silêncio que parecia vir de um mundo além da morte. O próprio mar os engolia, puxando-os para baixo, como se braços invisíveis os arrastassem para as profundezas. E, cada vez que alguém era levado, o sussurro ao meu redor ficava mais forte, como se a criatura estivesse se alimentando de suas almas.

Um relâmpago iluminou o convés, e eu vi uma última sombra — ou o que eu pensava ser uma sombra — rastejando em direção à caixa. Um rosto emergiu das trevas, mas era um rosto que parecia muito antigo, quase mumificado, com olhos desprovidos de vida, olhos que me encaravam como se soubessem de tudo que eu havia feito, tudo que eu havia tocado e tudo que eu havia desejado.

Eu gritei. Gritei como nunca havia gritado antes, mas minha voz foi abafada pelo rugido das águas, pelo som esmagador do mar quebrando o casco em pedaços. A caixa abriu-se por um instante e, de dentro dela, vi algo que era indescritível, algo que era pura luz e trevas ao mesmo tempo. Senti uma presença que me observava com uma atenção fria, como se analisasse minha própria essência. E então tudo ficou branco.

Quando recuperei os sentidos, estava em uma praia desconhecida, cercado de destroços do Korínthioi, do outro lado de uma ilha sem nome. O mecanismo, junto com a caixa, havia desaparecido. Olhei para o céu e vi o Sol, mas agora eu sabia que não era o mesmo Sol. Ele me parecia distante, frio, como se estivesse zombando da minha existência.

Nunca contei a ninguém o que vi, pois, desde aquele dia, sou assombrado pelos sussurros que continuam em minha mente, ecoando os segredos que jamais deveriam ter sido revelados.

Nota: Traduzido do grego antigo.

2 comentários em “O último guarda de páte Korínthioi”

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.