Um conto de terror folclórico do ABC Paulista)
I. O NASCIMENTO QUE RACHOU O CÉU
Naquela noite de sexta-feira, o Hospital Anchieta — um esqueleto de concreto no coração de São Bernardo — engoliu o último suspiro da mãe desconhecida. O parto foi acompanhado por trovões que desenhavam rostos no céu. A parteira, Dona Lurdes, perdeu todos os cabelos quando segurou a criança pela primeira vez. Os fios caíram como cinzas, revelando queimaduras em forma de runas em seu couro cabeludo.
A bebê não chorou. Riu.
Seus olhos eram duas brasas negras, pupilas cortadas como fendas de serpente. Os dentes, afiados como lâminas de osso, já nasceram manchados de sangue. O médico, um homem cético de jaleco sujo, gritou antes de correr nu para a Avenida Prestes Maia: “Ela tá cheia d’eles! Eles tão olhando por dentro!” Ninguém o viu novamente.
No berço de pedra deixado para a criança, inscrições pulsavam em três línguas:
- Latim (“Sanguis vinculum, inferni carcer” — “Sangue é o laço, prisão do inferno”);
- Tupi antigo (“Añanga pytuna” — “O espírito que devora a escuridão”);
- Código binário (traduzido depois por um técnico do ARCO-7: “CONTAINMENT PROTOCOL 666: ACTIVE”).
A imprensa a chamou de “Bebê Diabo”. Os padres, de “Anticristo de Concreto”. Nenhum dos dois estava certo.
Ela era a jaula.
II. OS SETE DENTRO DELA
Ayaluma — nome dado pela curandeira que a criou nos escombros da Billings — carregava sete vozes na garganta. A velha Mãe Zefa, última das benzedeiras do Capão Redondo, ensinou-lhe a lutar contra elas:
- O Chifrudo: Voz de boiadeiro antigo, cheirava a enxofre e terra molhada. Queria arrancar seus olhos para substituí-los por carbúnculos.
- A Dente-de-Cobra: Sussurrava em seu ouvido à noite, oferecendo veneno para matar qualquer um que a olhasse torto.
- O Cantor Reverso: Entoava salmos de trás para frente, fazendo sangrar os ouvidos de quem escutava.
Os outros quatro nomes eram impronunciáveis. Se ditos em voz alta, faziam sangrar os olhos.
Mãe Zefa morreu numa quinta-feira sem lua, quando Ayaluma tinha seis anos. Seu corpo foi encontrado pendurado de cabeça para baixo no teto, sem marcas — exceto por um sorriso cortado de orelha a orelha, como se algo tivesse esticado sua pele. A menina sumiu na mesma noite.
III. O SANGUE, O SAL E O ARCO-7
O laboratório ARCO-7, escondido sob o Parque Escola, caçava Ayaluma há anos. Seus agentes usavam máscaras de gás adaptadas com sal grosso e cruzes invertidas. O Dr. Elias, líder do projeto, acreditava que ela era uma arma biológica ancestral.
— “Ela não é a profecia”, dizia, examinando fotos de gado mutilado em Diadema. “Ela é o cadeado. E alguém quer quebrá-la.”
Em 2019, quase a capturaram na Vila São Pedro. Dois agentes morreram: um engoliu a própria língua até sufocar; o outro derreteu, como vela sob o sol. Ayaluma fugiu, deixando pegadas de fogo no asfalto.
IV. A MENINA QUE NÃO QUERIA SER MONSTRO
Ayaluma odiava três coisas:
- Espelhos (os reflexos mostravam eles);
- Igrejas (a água benta queimava sua pele como ácido);
- Brigadeiros (o doce a fazia chorar — nunca provara um).
Ela se escondia nos lugares que ninguém olhava: terrenos baldios cheios de entulho, ônibus abandonados na Estrada dos Alvarenga, o teto do Extra da Rudge Ramos. Às vezes, ajudava.
— Uma vez, um homem batia na mulher na frente do Carrefour Anchieta. Ayaluma olhou pra ele. Só isso. Ele começou a gritar que tinha formiga debaixo da pele. No hospital, os médicos acharam seu corpo cheio de buracos… como se algo tivesse comido ele por dentro. (Depoimento anônimo, Boletim de Ocorrência nº 5678/2020)
V. A NOITE EM QUE ELA QUASE ABRIU A PORTA
Foi numa madrugada de nevoeiro vermelho, perto da Represa. Os demônios dentro dela estavam famintos. Ayaluma caiu de joelhos, cuspindo fagulhas. Seus chifres romperam a pele, negros e retorcidos como raízes de árvore queimada.
— “Deixa a gente sair”, rosnou O Chifrudo com sua voz. “A gente só quer brincar.”
Foi quando viu o cachorro.
Um vira-lata magro, com uma pata quebrada, cheirando seu rosto. O animal não tinha medo. Lambia o sangue que escorria de seu nariz.
Ayaluma engoliu o fogo.
Os chifres recuaram.
VI. O FIM (OU O COMEÇO?)
Hoje, Ayaluma ainda vagueia pelo ABC. Se você vir uma menina de vestido rasgado observando o rio Tamanduateí, cuidado:
- Se ela estiver sorrindo, pode passar. Ela só quer ver o mundo.
- Se estiver cantarolando em uma língua que dói seus ouvidos, corra.
- Se estiver calada, com os olhos totalmente negros…
…rezar já não adianta.
(Fim — ou será “Abertura”?)
Notas do Autor:
- Inspirado em relatos de assombrações do Grande ABC, como o Hospital Anchieta e os mistérios da Represa Billings.
- Mistura elementos do folclore brasileiro (como o Añanga tupi) com horror lovecraftiano.
- O ARCO-7 é uma referência a projetos reais de investigação paranormal no Brasil.
- Terror Folclórico Brasileiro.
- Todos os fatos e personagens são ficticios (até onde eu saiba)