A outra – los hermanos
“A gente ria tanto desses nossos desencontros
Mas você passou do ponto
E agora eu já não sei mais”
1. Abertura – O pedido de paz
“Paz, eu quero paz / Já me cansei de ser a última a saber de ti”
O eu-lírico está exausto do ciclo de recaídas e mentiras. “Ser a última a saber” significa receber as notícias só depois que o dano está feito — seja um sumiço, uma crise, ou um novo episódio de uso.
O “paz” não é só tranquilidade no relacionamento, mas também o alívio da tensão constante de esperar o próximo desastre.
2. O vício como rival invisível
“Se todo mundo sabe quem te faz / Chegar mais tarde”
Aqui, “chegar mais tarde” não é só literal. É o atraso emocional, o distanciamento. Todo mundo já percebeu o motivo — a substância, a “outra” — e a pessoa viciada já não esconde bem.
3. A fantasia dolorosa
“Eu já cansei de imaginar você com ela”
Quando “ela” é o vício, o eu-lírico está revivendo mentalmente cenas de recaída: o parceiro entregando-se à substância, escolhendo-a no lugar do amor que eles têm.
4. O humor que virou amargura
“A gente ria tanto desses nossos desencontros / Mas você passou do ponto”
Antes, talvez houvesse leveza — pequenas ausências, escapadas. Mas o vício escalou. “Passar do ponto” aqui ecoa como passar do limite da brincadeira para um território perigoso, possivelmente até com risco físico e emocional.
5. A decisão de buscar outro “par”
“Quero dançar com outro par / Pra variar”
Metáfora para buscar novas companhias e experiências saudáveis. O “dançar” é viver, se conectar. Esse “outro par” não é necessariamente outra relação amorosa, mas sim uma vida sem ser refém do vício do outro.
6. As marcas do abuso
“Não dá mais pra não fingir que ainda não vi / As cicatrizes que ela fez”
As “cicatrizes” podem ser físicas (acidentes, doenças) ou emocionais (traição, promessas quebradas, crises de abstinência). Antes, havia negação; agora, não dá mais para ignorar o estrago.
7. O reconhecimento da derrota
“Se dessa vez ela é / Senhora desse amor”
O vício venceu. Ele ocupa o lugar central na vida da pessoa amada. A relação perdeu a prioridade para a substância.
8. O afastamento para sobreviver
“Pois vá embora, por favor / Que não demora pra essa dor… sangrar”
O eu-lírico percebe que, se ficar, vai se machucar ainda mais. É um pedido de auto-preservação: antes que a dor cresça a ponto de ser insuportável, é preciso cortar o laço.
Síntese interpretativa
Quando lida sob essa ótica, A Outra é quase um desabafo de quem viveu o triângulo amoroso entre amor, pessoa e vício.
A “outra” é uma amante destrutiva, sem corpo humano, mas com presença sufocante — o álcool, a droga, o jogo, qualquer dependência que rouba tempo, afeto e sanidade.
O eu-lírico está no limite: quer paz, reconhece o inimigo e entende que, às vezes, amar também é saber sair.
A outra
Canção de Los Hermanos ‧ 2003
Paz, eu quero paz
Já me cansei de ser a última a saber de ti
Se todo mundo sabe quem te faz
Chegar mais tarde
Eu já cansei de imaginar você com ela
Diz pra mim
Se vale a pena, amor
A gente ria tanto desses nossos desencontros
Mas você passou do ponto
E agora eu já não sei mais
Eu quero paz
Quero dançar com outro par
Pra variar, amor
Não dá mais pra não fingir que ainda não vi
As cicatrizes que ela fez
Se dessa vez ela é
Senhora desse amor
Pois vá embora, por favor
Que não demora pra essa dor… sangrar
Não dá mais pra não fingir que ainda não vi
As cicatrizes que ela fez
Se dessa vez ela é
Senhora desse amor
Pois vá embora, por favor
Que não demora pra essa dor… sangrar
Nota rápida: este texto é uma leitura interpretativa e psicoeducativa. Não substitui avaliação ou tratamento por profissional de saúde. Se houver risco de abstinência grave ou perigo imediato, procure ajuda médica.
A Substância
“A Outra” dos Los Hermanos, ao ser lida como se “ela” fosse uma substância — o álcool — transforma‑se numa narrativa dolorida: amor, traição, espera e a lenta erosão de quem fica tentando manter a normalidade. Nesta postagem, uso ferramentas da Terapia Cognitivo‑Comportamental (TCC) para mapear esse cenário: identificar pensamentos automáticos, padrões comportamentais, gatilhos de recaída e oferecer exercícios práticos para quem está do lado de fora, tentando paz.
A ideia não é moralizar. É dar linguagem, clareza e passos — porque quando o mundo vira incerteza, a gente precisa de mapas e ferramentas.
Lendo a letra como caso clínico: o que vemos
Ao reinterpretar versos pela lente do vício, alguns movimentos emergem com força:
- Hipervigilância: quem espera pelo parceiro vive em estado de alerta — “ser a última a saber” traduz esse desgaste.
- Normalização inicial: antes, os desencontros eram até motivo de riso; com o tempo, o padrão escala e vira dano repetido.
- Feridas cumulativas: as “cicatrizes” não são só físicas, são emocionais, sinal de lesões que se somam.
- Decisão por autopreservação: o pedido “Pois vá embora, por favor” é uma fronteira, o reconhecimento de que ficar significa sangrar mais.
Esses elementos são exatamente os que modelam uma formulação TCC de um problema relacional com uso de álcool.
Formulação TCC (ABC) aplicada a trechos da canção
A TCC organiza experiências em A (Ativante) → B (Pensamentos/Crenças) → C (Consequências: emoções e comportamentos). Vou exemplificar com situações evocadas pela letra:
Exemplo 1
- A (situação): Ele chega tarde, disfarça, some sem explicação.
- B (pensamento automático): “Eu não sou prioridade; ele prefere a bebida.”
- C (emoções/comportamentos): Tristeza, raiva, vigilância, confrontos ou retraimento.
Exemplo 2
- A: Repetidas promessas quebradas; sinais claros de dano (“as cicatrizes que ela fez”).
- B: “Se eu continuar aqui vou me destruir”, “ele nunca vai mudar”.
- C: Sentimento de desespero, decisão por afastamento ou por tentativas controladoras.
O ciclo de reforço
O álcool atua como reforçador para quem usa (alívio temporário, autopunição, anestesia), e como destruidor para quem espera. A reação emocional da parceira (confronto, tentativa de controlar, averiguações) pode inadvertidamente manter o padrão: em alguns momentos aumenta a tensão que precipita novo uso — o que a TCC chama de cadeias comportamentais e situações de risco.
Pensamentos automáticos e distorções cognitivas comuns
Na voz do eu‑lírico aparecem padrões cognitivos típicos de quem convive com o abuso:
- Leitura da mente: “Ele prefere ela” — certeza sem provas absolutas.
- Personalização: “Se eu não tivesse…” — a pessoa assume responsabilidade exagerada.
- Catastrofização: “Que não demora pra essa dor… sangrar” — expectativa de piora absoluta.
- Tudo ou nada: “ou ele me escolhe, ou acabou” — polarização.
A TCC trabalha essas distorções reunindo evidências, gerando pensamentos alternativos e reduzindo a carga emocional que alimenta reações impulsivas.
Intervenções comportamentais e cognitivas para quem quer “paz”
A pessoa que quer paz (a parceira) não tem, na prática, o poder de forçar a recuperação do outro; mas tem poder sobre suas reações e sua vida. Algumas estratégias TCC úteis:
1. Ativação comportamental
- Retomar atividades que tragam reforço positivo não ligado ao parceiro: caminhar, tocar um instrumento (gosto por violão, por exemplo), escrever, encontrar amigos.
- Planejar micro‑rotinas semanais: 3 atividades que façam o dia valer a pena independentemente do comportamento alheio.
2. Reestruturação cognitiva
- Registrar pensamentos automáticos (veja o worksheet abaixo).
- Testar evidências pró/contra antes de agir no calor da emoção.
3. Treino de assertividade e fronteiras
- Ensaiar scripts curtos e firmes, por escrito e com role‑play:
- Ex.: “Quando a bebida ocupa seu tempo e me machuca, preciso de um afastamento de X dias.”
- Ex.: “Eu me importo com você, mas não posso continuar exposto(a) a violência/mentiras — preciso que busque ajuda.”
4. Regulação emocional
- Técnicas simples para momentos de crise: respiração diafragmática 4‑4‑6 (inspire 4s, segure 4s, expire 6s), grounding (5‑4‑3‑2‑1 sensorial), escrever por 5 minutos sem filtro para descarregar a ruminação.
5. Plano de prevenção de recaída relacional
- Mapear gatilhos (festas, brigas, dias de stress).
- Preparar respostas alternativas (sair para caminhar, ligar para amigo, recusar discussão).
- Ter números de emergência: grupos de apoio para familiares; serviços de saúde mental.
Importante: se houver risco de abstinência física, agressão ou perigo, a prioridade é segurança e acompanhamento médico/psicológico.
Thought record / Ficha ABC (modelo)
Use este modelo como exercício. Imprima, preencha ou adapte ao seu diário.
Campo | Exemplo / Como preencher |
---|---|
Situação (A) | Descreva objetivamente: “Ele chegou às 3h e mentiu sobre onde estava”. |
Pensamento automático (B) | O que você pensou na hora? (“Ele prefere a bebida”). |
Emoções (C) | Liste e pontue 0–10 (tristeza 8/10; raiva 7/10). |
Evidências a favor | Fatos concretos que sustentam o pensamento. |
Evidências contra | Fatos que contradizem a certeza absoluta. |
Pensamento alternativo | Uma versão mais equilibrada e útil. |
Ação planejada | Passo concreto para as próximas 24–72 horas. |
Exemplo preenchido (resumido)
- A: Mensagens que mostram consumo noturno e promessas não cumpridas.
- B: “Ele sempre escolhe a bebida.”
- C: Tristeza 8, vergonha 6.
- Evidências a favor: repetição de episódios.
- Evidências contra: houve momentos em que mostrou carinho; “sempre” é uma palavra extremista.
- Alternativa: “Ele tem um problema com álcool que não escolhe assumir; isso dói, e eu preciso de limites claros.”
- Ação: marcar conversa em dia neutro, ligar para amiga, planejar 2 atividades semanais fora de casa.
Plano prático em 6 passos para buscar paz (guia rápido)
- Avalie segurança: se houver risco, priorize ajuda profissional.
- Registre: 3 episódios da última semana com datas e efeitos (material para decidir).
- Ative suporte: fale com amigo/familiar, grupo de apoio.
- Defina limites: comunique de forma direta e curta; descreva consequência concreta (ex.: afastamento por X dias).
- Substitua reforço: planeje atividades que devolvam sentido e prazer.
- Procure acompanhamento: terapia individual (TCC) e grupos para familiares (Al‑Anon, por exemplo), quando disponíveis.
Observações sobre empatia e autocuidado
A TCC não é fria: reconhece a dor, mas oferece ferramentas para reduzir dano. Amar alguém que usa substâncias é um confronto entre esperança e proteção. A paz pela qual se clama na canção é, em termos terapêuticos, a restauração de uma vida com reforços positivos, limite e agência.
Conclusão
Ler A Outra como se “ela” fosse o álcool é evocador e útil — a música dá nome a um cenário que milhões vivem: promessa quebrada, desgaste quotidiano, feridas que se acumulam. A TCC oferece mapa: identificar pensamentos que aprisionam, criar ações que libertam, e construir limites que protegem.
Se você escreve sobre isso, acompanha alguém assim ou está nesse lugar, use este post como ponto de partida: registre, respire, plante uma rotina que lhe traga reforço e peça ajuda. Paz, aqui, é também estratégia.