A Igreja que Cai do Céu

Na Zona Leste, as coisas não mudam de repente. Elas vão sendo empurradas.

Primeiro somem os bares antigos. Depois o aluguel sobe sem explicação. Aí chega a obra grande, limpa demais para o entorno. Foi assim com a Igreja da Nova Aliança, erguida entre um antigo galpão abandonado e um conjunto habitacional dos anos 80, perto demais da Radial para ser coincidência.

Três meses. Esse foi o tempo.

Onde antes tinha mato alto, descarte irregular e grafite apagado pela chuva, surgiu o templo. Branco, liso, sem pichações. Nem tentativa. A luz da fachada ficava acesa dia e noite, constante, sem piscar, como se não dependesse da Enel.

Eu fui pastor ali por quase dois anos.

No começo, a conversa era sempre a mesma. Prosperidade, renovação, futuro. Palavras que encaixam bem em qualquer bairro cansado.

Uma vez, antes do culto, ouvi dois diáconos conversando perto da entrada.

“Engraçado, né”, disse um deles, olhando para os prédios ao redor. “Antes ninguém queria passar aqui à noite. Agora tá cheio de carro importado.”

O outro deu de ombros.
“É o progresso. Quando a bênção chega, o bairro muda junto.”

Na época, aquilo soou normal. Hoje, não.

O templo vivia cheio. Gente do Brás, de Itaquera, de São Mateus. Alguns vinham a pé, outros em vans fretadas. Saíam diferentes. Não felizes exatamente, mas mais leves. Como quem entrega algo pesado sem saber o quê.

Durante os cultos, muitos repetiam frases sem perceber.

“Tá chegando.”
“É agora.”
“A aliança vai se cumprir.”

Diziam que eram manifestações espirituais. Anjos.

Eu comecei a desconfiar numa madrugada de terça-feira, quando fiquei sozinho organizando os equipamentos de transmissão. As câmeras nunca desligavam. Nem quando não havia culto.

Foi aí que ouvi o som.

Não vinha do chão, como trem passando longe. Vinha de cima. Um ruído molhado, ritmado, como respiração mal adaptada.

O teto se abriu.

Não quebrou. Não cedeu. Ele se afastou, como pele obedecendo um comando antigo.

A coisa desceu sem pressa.

Não tinha asas. Flutuava como se o ar fosse mais denso ao redor dela. A forma lembrava um corpo alongado, translúcido, e sob aquela superfície leitosa algo se movia, escamoso. Onde deveria haver rosto, havia apenas sugestões. Fendas verticais que se ajustavam à luz do altar.

Quando falou, não usou som.

“Ponto de coleta confirmado.”
“A devoção local é ideal.”

Caí de joelhos sem perceber quando minhas pernas desistiram.

No chão, símbolos começaram a brilhar. Não eram cruzes. Eram desenhos antigos, disfarçados de elementos litúrgicos. A arquitetura inteira do templo fazia sentido agora. Não era uma igreja. Era uma antena.

Os cultos não eram oração.

Eram transmissão.

Comecei a vasculhar o que não deveria. Pastas internas, relatórios, termos de cooperação. Descobri reuniões com representantes do governo, licenças liberadas rápido demais, isenção total. Havia um termo recorrente nos documentos financeiros.

Fonte Externa Não Humana.

Eles não vinham como invasores. Vinham como parceiros.

A fé era combustível. Medo, entrega, êxtase coletivo. Energia limpa, renovável, extraída sem resistência.

Certa tarde, ouvi duas senhoras conversando na saída do culto, perto da lanchonete nova que substituiu o mercadinho antigo da esquina.

“Minha filha teve que se mudar”, disse uma delas. “O aluguel dobrou.”

A outra sorriu, ajeitando a bolsa com o logo da igreja.
“Mas olha em volta. Tá tudo mais bonito agora. Mais seguro.”

Naquela noite, tentei denunciar. Fui afastado. Disseram que eu estava confuso, espiritualmente fraco. Que a Zona Leste estava mudando e eu não acompanhava.

No último culto que vi, o templo estava lotado. Gente com as mãos erguidas, olhos fechados, entregando tudo. O chão vibrava. O teto começava a se abrir outra vez.

O pastor principal sorriu para as câmeras e disse:

“Não tenham medo. O céu está descendo até nós.”

Ele não mentia.

Hoje escrevo escondido, mudando de lugar sempre. A Igreja da Nova Aliança já abriu filiais em bairros vizinhos. O símbolo foi ajustado. Uma curva a mais. Um detalhe quase imperceptível.

Se você mora na Zona Leste e viu uma igreja grande demais surgir rápido demais, observe a luz.

Se ela nunca pisca, não é defeito elétrico.

E se durante o culto o teto parecer respirar, não olhe para cima.

Eles gostam de ser chamados de anjos.

E aprenderam a se adaptar melhor que qualquer incorporadora.

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