Maria Louca

Escrito por Darci Men

Sentado na varanda da sua velha casa, em uma cadeira improvisada e amarrada com cipó da floresta, seu Nhonhô, como é conhecido por todos da região, apreciava o “vai e vem” de máquinas, caminhões e pessoas em direção as obras da Usina Hidrelétrica de Jirau, no Rio Madeira, em plena floresta Amazônica.

Seu Nhonhô é o típico “barranqueiro”, como são conhecidos os moradores das margens dos rios amazônicos, mas com uma particularidade única: em uma região inóspita, onde a expectativa de vida é de, no máximo, 60 anos, aquele senhor ainda lúcido tem o dobro ou mais disso.

Ninguém, nem mesmo ele, sabe direito sua idade, quando lhe perguntaram se tem algum documento para ver sua idade, o velho ancião respondeu:

— Não tem não, sinhô. Perdi quando era moço, minha canoa aborcou – virou – no Rio Mamoré, perto do Forte.

Com o corpo “arcado” pelo tempo, a pele enrugada e as mãos trêmulas, mas com uma lucidez de fazer inveja às pessoas que o rodeavam, ele comentava com seu sotaque único e uma voz rouca e cansada:

— Apois pessoar, tanta bandaieira assim eu só vi nos tempo da “Maria Louca”. – Aponta o seu dedo trêmulo para um capão de mato e continua: — Ela vinha por aquele córgo – riacho –, toda cheia de trique-trique e não tinha arma viva que não parava pra ver ela passá, até o prégo – macaco prego – parava de brinca na castanhera – Castanheira (árvore típica da região).

As pessoas presentes se entreolharam, como se perguntando: “Quem é essa tal de Maria Louca?” Alguém logo esclareceu:

— Não se trata de D. Maria I, mãe de D. João VI, que também tinha esse apelido, nem tampouco de uma mulher. Maria Louca, ou Mad Maria, na versão mais sofisticada do escritor Márcio de Souza e também de uma mini-série da Rede Globo, era o apelido das locomotivas da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré.

Esse apelido, que no sul do Brasil é carinhoso (Maria Fumaça), lá é pejorativo mesmo, devido às grandes dificuldades encontradas para a construção e operação da estrada e, principalmente, ao grande número de mortes na sua construção, gerando também outros apelidos, tais como: Estrada da Morte, Estrada do Diabo e assim por diante.

Demonstrando a incrível lucidez daquele ancião, que ouvia atentamente a conversa, ele comentou:

— Esta floresta não é de brincadeira seu moço, já venceu muita gente grande e continua braba. Meu pai, que era um caboclo valente e conhecia essa mata como ninguém, morreu quando abria picada – caminho no meio do mato – para a Estrada da Maria Louca.

Alguém logo perguntou:

— Ele morreu de malária, seu Nhonhô ?

Milhares de trabalhadores morreram disso na época da construção da estrada.

— Não, sinhô. – respondeu o ancião — Uma onça pegô ele, mas ela morreu primeiro! – afirmando com orgulho: — Meu pai furô ela todinha com a faca.

Ouvindo essas histórias e vendo o atual abandono dessa estrada, vem a pergunta: “O que levou o governo brasileiro a gastar milhões em uma obra ‘faraônica’, ‘ligando o nada a lugar nenhum’ (estima-se que na época foram gastos o equivalente a 28 toneladas de ouro), ao custo de tantas vidas e considerada uma das maiores do mundo para a época, inclusive comparada com a construção do Canal do Panamá?”

A resposta parece simples: Questão econômica. Mas foi só isso?

Na época, praticamente todo transporte da região era efetuado através dos rios, mas naquele local especificamente existia um problema: as grandes cachoeiras do Rio Madeira (onde atualmente estão em construção as Usinas Hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio).

Isto inviabilizava o transporte fluvial de um produto com alto preço no mercado internacional e abundante na região, o látex (ou borracha).

Era necessário encontrar uma maneira de transportar essa riqueza e, em 1.867, o Imperador D. Pedro II criou uma comissão para estudar a viabilidade de construir a estrada que foi logo descartada devido as dificuldades.

Mais de cinco anos depois, uma empresa inglesa, a Public Works, assumiu o “risco” de fazê-la, mas devido as dificuldades, principalmente as doenças, abandonou o projeto menos de um ano depois, sem construir um metro sequer.

O contrato foi transferido para outra empresa inglesa, a Reed Bross. E Co., que também não construiu nada e a questão foi parar nos tribunais, anulando-se o contrato em janeiro de 1877.

No ano seguinte, em 1878, novo contrato foi firmado com a empresa americana Phillip e Thomas Collins, que criou a Madeira Mamoré Railway, especialmente para construir a estrada. No mesmo ano, a empresa teve um de seus navios a vapor naufragado, o Metrópolis, matando 80 pessoas e perdendo todo o material que transportava.

No ano seguinte, o próprio Collins foi atacado por índios e sobreviveu por pura sorte; sua empresa faliu com apenas sete quilômetros de trilhos assentados. Tudo foi abandonado novamente.

Nesse período ocorreu a guerra entre a Bolívia e o Chile, tendo a primeira perdido o temad mariarritório que dava aceso ao Oceano Pacífico, passando a depender do transporte fluvial para o Oceano Atlântico através dos rios amazônicos: Mamoré, Madeira e Amazonas. Mas as já mencionadas cachoeiras do Rio Madeira eram o grande problema, sem contar a floresta densa, os índios, as doenças e, principalmente, os conflitos com os brasileiros da fronteira.

Em 1.899 ocorreu a chamada Revolução Acreana e, para evitar uma guerra de maiores proporções, os governos brasileiro e boliviano assinaram em 17.11.1903, o “Tratado de Petrópolis”, tendo o governo boliviano cedido o território do Acre que lhe pertencia em troca do governo brasileiro construir a Estrada de Ferro de 366 km, ligando Guajará-Mirim, no Rio Mamoré, ao Porto de Santo Antonio, no Rio Madeira (Atual Porto Velho).

A concorrência para o novo contrato foi vencida pelo engenheiro brasileiro Joaquim Catramby, que nada mais era que um “testa de ferro” do mega investidor americano Percival Farguar, este, um polêmico empresário com vários projetos no Brasil e no mundo.

A obra foi alardeada no mundo inteiro como o mais ambicioso projeto do século, mas acabou sendo ofuscada pela construção do Canal do Panamá, que foi efetuada na mesma época.

A construção da estrada durou de 1.909 à 1912, envolvendo mais de 20.000 trabalhadores do mundo inteiro.

Nesse período ocorreram greves, tumultos e muitas mortes (mais de 1.500, sem contar os desaparecidos), intrigas palacianas entre o empresário Faguar e o ministro Juvenal de Castro, do então presidente Marechal Hermes da Fonseca (contrário a construção da estrada) e muitos gastos que levaram à falência da Companhia. (Esse período é demonstrado na minissérie Mad Maria, da Globo).

Mais incrível ainda: assim que a estrada ficou pronta, o preço da borracha despencou, a Bolívia encontrou outro caminho via Argentina, o canal do Panamá passou a operar e fazer concorrência e a operação da ferrovia (o mais ambicioso projeto do século) tornou-se deficitária.

Em julho de 1931, o governo brasileiro assumiu o controle da Ferrovia e, em 1966, depois de 54 anos de prejuízos, foi desativada e substituída por uma rodovia e todo o seu acervo abandonado.

Em 1972 a maior parte desse acervo foi vendida como sucata para uma empresa de Mogi das Cruzes, em São Paulo.

Realmente a Maria Louca merece o apelido que ganhou. Hilariante, não acham?

Seu Nhonhô, em sua simplicidade, falou uma grande verdade: a Floresta Amazônica não é para brincadeiras e já derrubou muita “gente grande”, que o digam Henry Ford (Fodlândia), Daniel Ludwig (Projeto Jari), Percival Farguar, entre outros que a desafiaram e perderam, sem contar os governos do Brasil, que investiu milhões em troca de um monte de ferro velho e da Bolívia que cedeu território em troca de nada.

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