Cachorrada – parte 2 – FiFi

A primeira coisa de que Fifi se lembra é de estar em um local escuro, abafado, apertado, onde não existia chão, nem paredes, onde tudo parecia balançar, em que era difícil de respirar, onde outras crianças se debatiam… Ela lembra de ver uma luz fina, por sorte, enquanto a “armadilha” sinistra balançava, ela foi parar perto da luz… Conseguiu, trêmula e fraca, aumentar a abertura. Sentiu seu corpo flutuar no ar, por um instante mínimo parecia que poderia voar, depois a queda.

E é com isso que ela tem pesadelos todas as noites… Ela tem outras tantas lembranças tristes, mas a luta pela sobrevivência era a mesma a cada dia, e as violências sofridas eram tantas que, muitas vezes ela abaixava a cabeça e deixava as coisas acontecendo, pois achava que era o melhor, ou que não tinha outra escolha.

Agora ela já é mulher feita, bela, dadas as circunstâncias de sua vida. Não era muito grande, já que nunca se alimentou direito… Ela vivia solitária, até que conheceu um grupo de excluídos, de párias, vistos como vagabundos, lixo, escória, ralé… Eles a protegeram, o líder do grupo se afeiçoou a ela e, só esperou ela ter a idade certa para lhe ensinar a arte de amar… (Na verdade, ele só comia ela, não tinha nada de amor, e ela, como uma boa cadela, consentia).

Foi aí que ela se tornou a ”Princesa” dos Cães do Baeta, mas era mais como um bibelô, sabia disso e não se importava, agora ela tinha proteção, comida, e até algumas regalias por ser de quem era. As outras do grupo não gostavam muito dela, assim que ela se envolveu com Bob, o Líder, Vick, a preferida anterior, começou a bolar um plano com outras duas e com a ajuda de Igor, braço direito de Bob e apaixonado por Vick, para se livrar da pobre Fifi…

Seria esta noite. Vick prometeu uma noite de amor para Igor se ele conseguisse distrair Fifi para que ela escondesse alguns alimentos nas coisas de Fifi… Para eles, o pior crime, era não dividir o alimento com um irmão, e roubar coisas do grupo para, de forma egoísta, se alimentar só era punido com uma surra e a expulsão do grupo.

Todos sabiam disso… naquela tarde Igor chamou Fifi para dar uma volta, disse que precisava de ajuda para caçar uns ratos na casa de uma senhora solitária no fim da rua. Fifi não desconfiou, já que este era um procedimento normal, todos trabalhavam no grupo, principalmente os líderes, e todos poderiam exercer qualquer função, de acordo com sua capacidade.

Foram caçar… Ela achou Igor mais quieto que o normal… Eles sempre andavam juntos, já que ele era o melhor amigo de Bob e o que ele mais confiava no grupo, acabaram se tornando quase amigos… Ele sabia que a estava traindo, mas a vontade de ter Vick, nem que fosse só por uma noite, era por demais tentadora… Quando a consciência começava a pesar, ele lembrava de quanto tempo sonhou com este momento… E o peso passava, e ele ficava leve, e apaixonado, flutuava no sonho e na esperança de uma noite com aquela que tanto desejou…

Fifi fez algumas piadas, estava feliz, ela não contou pra ninguém, mas achava que estava prenha. Só queria confirmar para poder espalhar a notícia… Ela já ficara outras duas vezes, e nas duas vezes, por motivos desconhecidos, perdera as crianças… Ela tinha medo de não poder ter filhos, o que ela não sabia é que ela realmente precisava tomar cuidado durante a gestação, pois era muito sensível e perderia novamente a cria se não tomasse cuidado.

Voltaram tarde, o trabalho foi duro mas recompensador, quando chegaram à praça onde o grupo estava, eles estavam reunidos, esperando por ela.

Fifi foi acusada de traição. Bob, triste, envergonhado, sentindo-se traído, com raiva… Passou quase todo o tempo do rápido julgamento de cabeça baixa… Igor quase não conseguia tirar os olhos de Vick, que mal conseguia esconder sua satisfação…

Quando os primeiros golpes da surra foram dados, ela sentiu que perdeu a cria, não chorou, não implorou, aceitou a punição e saiu do grupo, humilhada, machucada por dentro e por fora, novamente só… E inocente…

Começou a andar pelo bairro, mas sabia que se ficasse por perto, os ex-companheiros poderiam atacá-la: agora ela era considerada traidora, e, para os cães do Baeta, os traidores eram pior que os inimigos. O último a ser considerado traidor, foi encontrado morto dois dias depois da expulsão… Ninguém sabe direito o que aconteceu… Uns dizem que se jogou na frente do carro por vontade própria, outros que foi forçado por um ou mais membros do grupo… Decidiu então ir para longe, não tinha nada, e tinha que começar vida nova em outro lugar.

Andou durante algumas horas, até que achou uma marquise qualquer para se recolher… Seu corpo doía, o resto de esperança de não ter perdido a cria se foi quando percebeu o sangramento… A tristeza e a solidão tomaram conta dela neste momento, junto com uma violenta febre… Não demorou muito para ela desmaiar… O dia quase nascendo e ela dormiu… Essa marquise era em uma padaria que fechou as portas depois do décimo terceiro assalto em dois anos, então ninguém a incomodou… E ela dormia… e sonhava com um lugar escuro e abafado…

Continua…

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